“E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos. (…) Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus…”
Mateus 6:7
Creio já ter dito que não vejo graça nenhuma em cerimônias. Não entendo esse costume de articular gestos e palavras preestabelecidos. Vejo neles um desperdício: é como se já existissem antes de serem executados.
Talvez a cerimônia seja um resquício que temos do tempo cíclico, esse tempo que se renova a cada grande respiração do universo. Ou talvez pelo contrário, seja a suspensão do tempo, a repetição de algo, a reafirmação de um gesto, para mostrar que ainda somos os mesmos. Não, não é correto falar em suspensão do tempo, pois ainda existe a sucessão dos eventos mas, de alguma forma, o tempo fica constrangido a alguns poucos de seus inúmeros eventos. Nesse estranho momento (se é possível falar num momento) a linha do tempo converte-se em redemoinho e perde-se sobre si mesma. É como se o tempo se distraísse em devaneios próprios e deixasse os homens (os objetos, a natureza, tudo) condenados à repetição.
Ou talvez a cerimônia seja um jeito (é o que sempre me dizem) de nos sentirmos unos com o nosso passado, com tudo o que existiu antes de nós, mas me pergunto se existirá utopia maior que a dessa união, já que tudo o que fazemos é esquecer. Podem dizer então que a cerimônia pretende ser um repositório (como o livro o é para a palavra) de gestos circunspectos com a secreta tarefa de contrariar a tendência inevitável ao esquecimento. Nesse sentido, a cerimônia seria uma espécie de enciclopédia dos gestos e das intenções que se escondem por detrás deles. Se pensarmos nela assim, posso ver aí alguma utilidade, mas desconfio seriamente de sua eficácia. A mera repetição não assegura a permanência de sentido naquilo que se quer guardar, mas só a permanência de sua forma. Se é freqüente ver alguém envergonhado ao ensaiar gestos e palavras para alguma ocasião, é só porque não vê mais conexão com o sentido do que ensaia.
A intenção que há por trás da cerimônia, considerando-a aí hermeticamente e não como uma simples repetição involuntária, pode muito bem ser a de fazer reviver o que foi feito desde o princípio. Seria, portanto, a herdeira cartesiana e rígida das tradições e dos rituais dos povos antigos. Mas quando leio Eliade desconfio também desta hipótese. Não consigo realizar que os mitos universais e suas encenações (ou melhor, suas atualizações) vieram desembocar nesses eventos aos quais assistimos hoje. A crença universal num dilúvio, o rito de sacralização da terra, a idéia de que o mundo foi criado de alguns poucos elementos, isso tudo não pode mais (essa é a minha esperança) ser recuperado pelas cerimônias do mundo de hoje.
Imagino os milhares de gestos e expressões que se perderam assim que se completaram, e não vejo as cerimônias os recuperando; antes pelo contrário: elas condenam tudo à falta de originalidade. Talvez por isso o mais interessante de um casamento seja o que contraria a monotonia nele antevista. Revejo na memória os muitos casamentos, missas e formaturas a que compareci e só me lembro do que, neles, não foi casamento, missa ou formatura: o padre que esquece a ordem correta das palavras, as crianças que pisam na cauda do vestido de noiva, os parentes inconvenientes, os bêbados, os fotógrafos… Um dos componentes da beleza é, certamente, o surgimento de algo legitimamente inesperado e espontâneo no meio de algo cuidadosamente projetado e que já não tem muito de real.
Penso num sonho, contado por uma amiga.
1.
Ela sonhou que assistia, do fundo de uma multidão, a uma espécie de condecoração: uma mocinha de uns doze anos seria homenageada com uma guirlanda de pequenas flores do campo; tudo acontecia num lugar enorme e suntuoso, num clima de austero silêncio. Era uma cerimônia interminável — como, aliás, todas nos parecem.
Ela lembra ouvir a tal menina declamar versos extensos, numa língua próxima da sua, mas da qual só entendia os cognatos, ou o que pensava, na ocasião, serem os cognatos.
A essa altura do relato parei um instante para me perguntar se alguém pode pensar em cognatos num sonho, mas voltei ao relato concluindo que nada é impossível num sonho de alguém que lida com línguas.
Enquanto a menina balbuciava textos supostamente belíssimos no centro do saguão grandioso, a minha amiga, sonhando e sentindo-se desconfortável por não entender aquela língua que todo o resto da audiência compreendia, olha desolada para o chão e acha um papel pisoteado e sujo. Nele encontra o tal texto da menina escrito em forma circular, sem começo e sem fim. Ouve então com mais atenção e percebe com angústia que o mesmo texto recomeça a cada cinco ou seis minutos, o que a faz pensar na hipótese de que este evento sempre estivesse lá, sendo repetido desde o começo dos tempos. Sente pânico na possibilidade de ficar presa para sempre naquela situação.
Mas nesse mesmo instante a menina termina o texto e anuncia que vai ler um outro, curto porém sagrado, escrito na língua dos seus antepassados. Quando começa, minha amiga percebe que a tal língua sagrada era a dela (ou seja, a nossa) e que o texto era algo parecido com uma receita de bolinho de queijo ou uma bula de remédio. Começa a rir, primeiro baixinho, depois gargalhando, certamente por considerar pouco sagrado um texto desse numa cerimônia tão grandiosa, ao que a multidão vira-se para ela, aquela multidão que agora percebia estrangeira e insultada com o seu riso. Pensa em fugir mas as pessoas a espremem até perder o ar. Ela é levada, contra a sua vontade, à presença do sacerdote, que a olha com um ar severo mas paternal.
Ele tira a guirlanda de flores do campo da menina (a qual sai chorando em outra língua) e a coloca na minha amiga, que por sua vez recita várias vezes, e com várias entonações diferentes, a bula de remédio, ao que a multidão responde com aplausos e com risos. Quando percebe que está, ela também, repetindo indefinidamente o conteúdo da bula como a menina fazia antes, acorda assustada e me liga em seguida para contar o sonho.
2.
Tenho, da minha parte, certeza que mais da metade do sonho foi montado por ela enquanto me contava, num exercício de pós produção, o que, aliás, não lhe tira a originalidade.
Sonho em preparar cuidadosamente, caso encontre pessoas que pensam como eu, uma cerimônia em que todos se comportem como crianças imprevisíveis e brinquem uns com os outros.
Se a essência última da cerimônia é a repetição, pode-se dizer o mesmo da música, dos jogos e da própria vida. Temas e variantes de temas, apresentados e reapresentados, defasados, espelhados, levemente alterados, mas sempre compostos de temas que reaparecem, que se repetem exaustivamente.
Talvez todo o horror que me ronda quando penso na hipótese do eterno retorno venha dessa imagem: a de entender a vida como uma cerimônia, como algo que já foi encenado infinitas vezes e que continuará sendo. Não sei se existe imagem mais angustiante que a dessa eterna repetição, que vê no final dos tempos um recomeço, essa imagem que enverga a linha reta do tempo em um círculo, que faz com que a foz do rio de Heráclito seja também sua nascente.
Talvez tenhamos a pretensão da originalidade, assim como temos a da identidade.
Esta amiga que me contou seu sonho hoje me diz que, sempre que vê flores do campo, pensa estar sonhando e tem a irresistível vontade de comprá-las, botá-las na cabeça e declamar solenemente uma bula de remédio.
Se a vida, vista de longe, é esta cerimônia composta de cerimônias menores, de minha parte, sonho também eu com uma cerimônia, mas improvisada e displicente.